LIVROS COM HISTÓRIAS
QUE NÃO ESTÃO NOS LIVROS – Um livro pode conter muito mais do
que aquilo que vem escrito no seu conteúdo. O exemplar pode ter histórias
pessoais do seu dono, ou conter dedicatórias raras, ou ter sido emprestado e
ter ali registradas impressões manuscritas dos leitores, por ter sido impresso
há cem ou duzentos anos... e assim por diante. Este blog pretende, pois, contar
algumas dessas histórias paralelas a determinados exemplares da minha
biblioteca.
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Capa de CONTOS de HERMANN
HESSE
Comendador Francisco Souto Neto
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CONTOS de HERMANN HESSE
por Francisco Souto Neto
O meu exemplar do livro CONTOS, de Hermann Hesse, teve uma
história curiosa que começou com outra
história: o professor e catedrático Robert Karel Bowles era conhecido em Ponta
Grossa por sua cultura. Ele era filólogo e linguista, um holandês nascido na
Ilha de Java. O Professor Bowles, como era conhecido, falava seis ou sete
idiomas com perfeição e sem sotaque, tal como o ouvíamos falar no nosso idioma.
Sua esposa, Dona Johanna, igualava-o em cultura. E os filhos, Henrique, Ada e
Robert Jan, todos holandeses de nascimento e depois naturalizados brasileiros, seguiam
a mesma trilha dos pais em formação de caráter e cultura.
Em meados da década de 60 o Professor Bowles idealizou uma coletânea
com artigos de seus colegas catedráticos da atual Universidade Estadual de
Ponta Grossa e de alguns alunos mais brilhantes, que teria o título de Minerva. A edição de 1967 levava o
subtítulo de “Anuário da Faculdade
Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Ponta Grossa” – Nº 1. A propósito, meu pai, Arary Souto, é
mencionado à página 163 dessa obra, num texto do jornalista Daily Luiz Wambier,
intitulado “Literatura Ponta-grossense”.
Prof. Bowles, eu soube depois, teve muito trabalho para realizar
tal livro, devido à quantidade de “tropeços” dos autores no idioma pátrio, e
também nos erros cometidos pelo linotipista da gráfica encarregada da edição.
Para realizar o Nº 2 dessa publicação no ano seguinte, 1968, ele resolveu
encontrar alguém que fosse muito bom em português para auxiliá-lo.
Sinceramente, não sei como ele chegou ao meu nome. O fato é que o Prof. Bowles
perguntou-me se eu poderia ajudá-lo.
Eu trabalhava no Banco do Estado do Paraná no cargo de
escriturário, de manhã e à tarde. Naquele 1968 eu cursava o 3° ano de Direito,
à noite. Portanto, essa ajuda ao Prof. Bowles teve que ser durante minhas
férias na Faculdade de Direito, pois eu ia todas as noites à sua residência,
que era distante apenas uns 300 metros de onde eu morava. E lá ficávamos até
perto da meia-noite fazendo correções e discutindo sobre particularidades do
idioma. A certa hora, Dª Johanna trazia-nos chá com bolachas.
Capa de Minerva nº 1, de 1967.
O trabalho com Prof. Bowles era pura diversão. Os erros que
eu encontrava nos textos dos autores eram às vezes tão estapafúrdios, que eu
caía numa risada que quase sempre se transformava em incontido ataque de riso.
O Prof. Bowles mostrava-se indignado com erros tão primários encontrados em
textos daqueles autores, e com o excesso de equívocos do linotipista, enquanto
eu ria sem parar. O velho mestre às vezes também “embarcava” na minha risada, e
lá ficávamos, ele com seu riso discreto, e eu com as gargalhadas que me eram
comuns na juventude.
O fato é que os textos por nós analisados, discutidos e
corrigidos, ficaram enxutíssimos e o livro resultou perfeito no conteúdo e na
forma.
Professor Robert Karel
Bowles e sua esposa Dona Johanna (à esquerda) no casamento de Robert e Regina.
Ao lado direito, estão Francisco Souto Neto e sua mãe Dona Edith Barbosa Souto,
padrinhos do noivo em agosto de 1968.
Depois veio o nº 2 de Minerva. Desta feita, o Prof. Bowles
convidou-me para publicar um artigo, embora o livro estivesse montado com
textos e poesias dos professores e alguns alunos da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras... e eu era um estudante da Faculdade de Direito. Senti-me
muito honrado e escrevi uma vez mais com base num tema que eu vinha
desenvolvendo há tempos, que versava sobre minha viagem de turismo e estudos a
três países andinos, com o título de “Reflexões sobre o Império dos Incas”. O
livro, com 200 páginas como o anterior, resultou perfeito e foi apreciadíssimo
e aplaudido, como ocorrera com a primeira edição.
Capa de Minerva nº 2, de
1968, idêntica à edição do ano anterior.
O Prof. Bowles chamou-me para acertarmos as contas. E eu
disse a ele que não lhe cobraria absolutamente nada. Ele se surpreendeu,
insistiu em pagar-me e eu, por meu turno, insisti em nada receber, porque
aquele trabalho foi riquíssimo pelo tanto que discutimos sobre o idioma
português, e pelo tanto que aprendi e me aperfeiçoei. Como não bastasse,
tornei-me amigo de um dos filhos do professor, o jovem Robert Jan Bowles, e foi
uma amizade que atravessou as décadas, ampliada com o ingresso de Regina Romano
à família Bowles, pelo casamento com Robert. Isto aconteceu há mais de meio
século. O Prof. Bowles e Dª Johanna já faleceram, entretanto eu, Robert e
Regina continuamos amigos até hoje.
Algum tempo depois da publicação de Minerva n° 2, meu amigo
Robert Jan foi à minha casa levando-me um presente do seu pai, o Prof. Bowles.
Eram três livros. Ele acertou inteiramente o meu gosto literário, porque o seu
filho Robert Jan, numa das suas frequentes idas à minha residência, tinha
descoberto quais os livros e os autores que me agradavam. Um desses livros era
Contos, de Hermann Hesse, naquela época um dos meus autores prediletos, de quem eu já
lera O Lobo da Estepe, Demian e outros. Mas eu ainda não conhecia Contos.
O livro CONTOS de Hermann Hesse
Capa de Contos, de Hermann
Hesse.
Dedicatória do Prof. Robert
Karel Bowles para Francisco Souto Neto.
O professor fez a seguinte dedicatória no livro, que me
deixou envaidecido e sensibilizado:
“E então ficamos, o
jovem doutor e eu, por horas a fio a pesar palavras e mais palavras, em noites
roubadas ao sono”.
Citação de “As
Memórias do Prof. Bowles”
Ponta Grossa,
12-7-1972.
Robert Karel Bowles.
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O livro contém vários contos de Hesse. Como de hábito, sempre
leio livros com uma caneta à mão, para ir fazendo anotações. Fiz inúmeras
delas, porque o livro era muito bom. Foi naquela época em que, numa viagem ao
interior de São Paulo, conheci um desenhista com extraordinário talento, Chico
Lopes, cuja história eu relato no livro VOZES DO PARANÁ Volume 9, resultado de
uma entrevista que concedi ao jornalista Aroldo Murá Haygert. Vide, no link abaixo, o último parágrafo do
capítulo “A arte ainda latente”, à página 154, e mais uma citação constante da
penúltima linha do capítulo “O sonho”, à página 155:
Como os desenhos e também os escritos de Chico Lopes eram
cheios de magia, e ele ainda não conhecia Hesse, resolvi emprestar-lhe o meu
exemplar. Enviei-o sob registro, pelos correios, para Novo Horizonte, interior
de São Paulo, onde residia o meu novo amigo, que então, em vez de “Chico
Lopes”, assinava “Franz”. Ele leu o livro e devolveu-o com belos desenhos que
fez com caneta preta. Pode-se dizer que ele ilustrou o livro, como se vê
abaixo.
Diversos desenhos feitos
por Chico Lopes no livro Contos, em meio a algumas anotações de Francisco Souto
Neto.
Devo acrescentar que Chico Lopes depois passou a pintar sobre
tela, com excelentes resultados, e ampliou suas atividades culturais em direção
ao universo da literatura, publicando livros com novelas e contos. Tão bem já
escrevia, que com um deles concorreu ao mais tradicional dos concursos no
Brasil, o prêmio Jabuti, e conquistou um troféu.
Hoje Chico Lopes faz muito sucesso no mundo literário e é um
escritor reconhecido.
O livro CONTOS, de Hermann Hesse, assim concentra várias
histórias de vitória de alguns amigos meus, e enriquece a minha biblioteca com
beleza, lembranças e saudade.
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