LIVROS COM HISTÓRIAS
QUE NÃO ESTÃO NOS LIVROS – Um livro pode conter muito mais do
que aquilo que vem escrito no seu conteúdo. O exemplar pode ter histórias
pessoais do seu dono, ou conter dedicatórias raras, ou ter sido emprestado e
ter ali registradas impressões manuscritas dos leitores, por ter sido impresso
há cem ou duzentos anos... e assim por diante. Este blog pretende, pois, contar
algumas dessas histórias paralelas a determinados exemplares da minha
biblioteca.
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Capa do livro Os
Melhoramentos de São Paulo, de Prestes Maia (edição 1945)
Comendador Francisco Souto Neto
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OS MELHORAMENTOS DE SÃO PAULO, de Prestes Maia (edição 1945)
Comentário por Francisco Souto Neto
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Na minha infância, lá pelos meus seis, sete ou oito anos, a cidade de
São Paulo era para mim o centro do mundo. Como eu residia em Ponta Grossa,
interior do Paraná, a capital paulista, onde residia a família de meu pai,
significava a expressão máxima do progresso. A simples viagem de trem equivalia
a uma grande aventura: meu pai comprava duas cabines intercomunicáveis, (com
dois leitos sobrepostos cada uma), que eram usadas uma para o casal e a outra
para nós, os três irmãos.
O trem partia de manhã, de Ponta Grossa, para chegar ao destino na manhã seguinte. Durante o dia, da janela do trem víamos desfilar um mundo de visual mágico. Ficávamos acenando para as pessoas que víamos nas áreas rurais, e encantávamo-nos com as paradas nas estações ferroviárias de várias pequenas cidades, quando ficávamos olhando as pessoas que se movimentavam pela plataforma. O almoço e o jantar no carro-restaurante tinham um quê de sensacional. E várias vezes meus pais revezavam-se em transpor a porta que ligava as duas cabines, para verem se estávamos bem. À noite, dormíamos eu e minha irmã no leito inferior, e o irmão quase dez anos mais velho que eu, no leito superior. Acordávamo-nos muitas vezes nas paradas para podermos, ainda que sonolentos, ver o que acontecia do lado de fora. O leito inferior ficava ao nível da janela, cujo vidro representava a segurança entre o interior e o exterior do trem. Ah, e a privada era sensacional para as crianças: as matérias fecais e o xixi caíam diretamente na via férrea, por isso o banheiro podia ser usado somente com o trem em movimento, jamais nas paradas em estações ferroviárias.
O trem partia de manhã, de Ponta Grossa, para chegar ao destino na manhã seguinte. Durante o dia, da janela do trem víamos desfilar um mundo de visual mágico. Ficávamos acenando para as pessoas que víamos nas áreas rurais, e encantávamo-nos com as paradas nas estações ferroviárias de várias pequenas cidades, quando ficávamos olhando as pessoas que se movimentavam pela plataforma. O almoço e o jantar no carro-restaurante tinham um quê de sensacional. E várias vezes meus pais revezavam-se em transpor a porta que ligava as duas cabines, para verem se estávamos bem. À noite, dormíamos eu e minha irmã no leito inferior, e o irmão quase dez anos mais velho que eu, no leito superior. Acordávamo-nos muitas vezes nas paradas para podermos, ainda que sonolentos, ver o que acontecia do lado de fora. O leito inferior ficava ao nível da janela, cujo vidro representava a segurança entre o interior e o exterior do trem. Ah, e a privada era sensacional para as crianças: as matérias fecais e o xixi caíam diretamente na via férrea, por isso o banheiro podia ser usado somente com o trem em movimento, jamais nas paradas em estações ferroviárias.
Um trem semelhante ao que unia Ponta Grossa a São
Paulo.
Uma cabine do carro dormitório com dois leitos
sobrepostos.
Para uma criança de Ponta Grossa, se uma viagem de trem era algo tão empolgante,
que dizer das impressões causadas pela grande metrópole de São Paulo? A
casa de minha avó era um sobrado na Rua Artur Azevedo (que continua existindo
em 2020, apesar da fortíssima especulação imobiliária da região), e eu ficava admirado
que houvesse um telefone de parede no hall de entrada, e uma extensão
representada por um telefone branco, instalado no andar superior da residência, no criado-mudo ao lado da cama
de minha avó, o que me parecia coisa de estrela de cinema de Hollywood. Havia no
andar térreo um aparelho milagroso chamado televisor, no qual à tarde eu
assistia a desenhos animados. Claro que a televisão ainda não existia no
Paraná, onde eu morava.
Minha querida avó paterna aos 90 anos, a
quem chamávamos de Mãe Nina.
Minha avó residia a uma quadra da Rua Teodoro Sampaio, onde tomávamos o bonde camarão para o centro da cidade.
Levado pelas mãos de minha mãe ou meu pai, era excitante subir os degraus
metálicos do bonde, até que encontrássemos lugar para nos sentarmos. Eu ia
sempre à janela, admirando a capital paulista. No centro da cidade havia uma
galeria dotada de escadas rolantes (para mim eram escadas rodantes) que, partindo do Vale do Anhangabaú pela Galeria Prestes
Maia, levavam a um nível superior da urbe, o que me fazia acreditar que
existiam duas São Paulos, surrealisticamente uma pairando sobre a outra.
O bonde
camarão de São Paulo.
Como eu era apaixonado por São Paulo, descobri que em nossa casa em
Ponta Grossa meu irmão tinha um livro de extraordinária beleza, enorme e
pesado, medindo 33 centímetros por 24, com o nome de Os Melhoramentos de São Paulo, de 1945, do prefeito Prestes Maia.
Ele mostrava fotografias de página inteira da capital, com obras realizadas
pelo revolucionário prefeito-arquiteto, e também maquetes de edifícios que
seriam construídos, e ainda projeções desenhadas de grandes avenidas que viriam
a ser abertas. Às vezes meu irmão permitia-me folhear o livro e ver as belas fotos
daquela que me parecia ser a mais bela cidade do mundo.
Anos depois, em 1963, logo após o falecimento de meu pai, meu
irmão, já casado, mudou-se com a esposa para Nova York. Acabaram ambos
naturalizando-se estadunidenses e lá residiram para sempre.
No fim da década de 60 em Ponta Grossa conheci Robert Jan Bowles, filho do professor
Robert Karel Bowles. Tornamo-nos amigos, tão amigos que quando Robert casou-se
com Regina Romano, convidou-me, e a minha mãe, para sermos seus padrinhos de casamento.
O Robert tinha em sua biblioteca pessoal o mesmo livro que meu irmão
possuía: Os Melhoramentos de São Paulo,
de Prestes Maia, edição de 1945. Era idêntico. Muitas das vezes em que eu ia à
casa do Robert, pedia para olhar referido livro e ficava folheando-o por longo
tempo.
Um dia, Robert Jan me surpreendeu. Chegou à minha casa com o precioso livro nas
mãos. Trazia-o de presente para mim.
Hoje em local de destaque na minha biblioteca, este livro é também um
elo com as lembranças da minha infância já tão distante.
Lombada e capa da edição de 1945 de Os Melhoramentos de São Paulo.
Página de abertura da obra.
Eu usava carimbar os meus livros com meu
nome. Este carimbo foi por mim aqui colocado há mais de 50 anos e mostra o meu
antigo endereço.
Página de apresentação da obra. À esquerda, dedicatória de
Robert Jan Bowles.
Detalhe da dedicatória de Robert Jan Bowles.
Uma das mais de 400 fotografias que ilustram o livro. Aqui, a Av.
Paulista no começo do século XX.
Fim da década de 40, o terraço do Banco do
Estado de São Paulo em final de construção.
O Vale do Anhangabaú no final da década de 40.
O túnel da Av. 9 de Julho logo que foi inaugurado.
Projetos para a construção do Paço Municipal.
Mais um projeto para o Paço Municipal de São Paulo.
Detalhe do que deveria ser o prédio da prefeitura. Parece até saído
do filme Metrópolis de Fritz Lang.
Lembra as monumentais construções de Nova York da primeira metade do século
passado. O Paço Municipal de São Paulo que agora existe, parece-me
inexpressivo.
São mais de 400 fotografias a ilustrar o livro. No ano de 2010 foi
editada uma nova versão deste livro, que pode ser encontrada na Estante
Virtual.
O prefeito Prestes Maia.
Para encerrar, vale comentar que o saudoso prefeito Francisco Prestes Maia
(1896-1965) é considerado o pioneiro do urbanismo moderno no Brasil pelas
profundas mudanças que introduziu na capital paulista durante sua gestão como
prefeito da cidade. Os Melhoramentos de São
Paulo é um livro quer vai muito além de um inventário ilustrado das obras
por ele realizadas. Seus arrojados planos urbanísticos – inspirados pelos
projetos concebidos e realizados em Paris pelo barão Haussmann, na segunda
metade do séc. XIX – estabeleceram, por meio de eixos e conexões sistêmicas, a
integração dos bairros centrais da capital paulista e estendeu os limites da
cidade, dotando-a da infraestrutura viária que permitiu sua expansão. Este
livro mostra, 75 anos depois, uma cidade magnífica que São Paulo não quis ou
não conseguiu ser.
Robert Jan Bowles na década de 70.
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