LIVROS COM HISTÓRIAS QUE NÃO ESTÃO NOS LIVROS – Um livro pode
conter muito mais do que aquilo que vem escrito no seu conteúdo. O exemplar
pode ter histórias pessoais do seu dono, ou conter dedicatórias raras, ou ter
sido emprestado e ter ali registradas impressões manuscritas dos leitores, por
ter sido impresso há cem ou duzentos anos... e assim por diante. Este blog
pretende, pois, contar algumas dessas histórias paralelas a determinados
exemplares da minha biblioteca.
-o-
Comendador Francisco Souto Neto
-o-
ERIK SATIE, de Anne
Rey.
A autora Anne Rey.
Erik Satie em 1909.
Antes de comentar este livro de Anne Rey, gostaria de contar quando e
como tomei conhecimento da música personalíssima de Erik Satie (pronuncia-se
“erríc satí”), um compositor erudito e inovador, sem similar, único no mundo,
nascido em Honfleur em 1866 e falecido em Arcueil em 1926, ambas cidades da
França.
Lá pela segunda metade da década de 70, eu andava com meu amigo Rubens
Faria Gonçalves pela Rua XV de Novembro, em Curitiba, quando ouvimos acordes
repetitivos ao piano. No quarteirão seguinte, os mesmos acordes continuavam
soando agradavelmente. Mas de onde viria aquele som contínuo? Intrigados,
começamos a procurar de onde viria a música e descobrimos que na rua havia alto-falantes
distribuídos a curta distância um do outro, e dali provinha aquele som belo e continuado.
Fomos então seguindo os fios e os alto-falantes, buscando pelo local do seu
início.
A Rua XV termina – ou começa – na Praça Osório. Bem na esquina, existia
o Restaurante e Café Iguaçu que funcionava no 1º andar e mantinha uma extensão
num anexo na rua, sobre o calçadão. E ali, sob aquele anexo, havia um piano ao
qual se conectavam os alto-falantes, e uma moça era quem estava ao teclado.
Chegamos mais perto e – surpresa! – ela era uma amiga de Ponta Grossa, a
pianista (concertista) Maria Lúcia Aguiar Armellini (Maria Lúcia Lopes após o
casamento). Ela também se surpreendeu ao ver-me. Lúcia era filha de minha
professora de Literatura Francesa no Curso Científico, Maria da Graça (Grací)
Aguiar Armellini, que veio a se tornar uma das minhas mais importantes amigas
de toda a vida.
Sem interromper a música que tocava, Lúcia contou-nos que aquele era um
projeto – não me lembro de qual iniciativa – que se propunha a tocar aquela
peça musical, composta sempre com os mesmos acordes repetitivos, por certa de 12
horas; então, a cada hora o pianista era substituído por outro em revezamento.
Faltava muito pouco para que o tempo dela expirasse, coisa com 10 ou 15
minutos, e então ficamos ali perto observando, até que chegou alguém que, sem
qualquer interrupção, assumiu o teclado enquanto Lúcia afastou-se rapidamente,
cedendo o banco a seu sucessor. E a melodia prosseguiu sem que o som sequer sofresse
nem o menor tropeço. Admirável.
Foi então que Lúcia contou-nos o nome do compositor: Erik Satie, e a
peça musical chamava-se Vexations.
Para que o meu leitor saiba como
são as Vexations, dou o exemplo
abaixo, de uma minúscula demonstração de apenas dois minutos, pela pianista
Joana Gama, apenas para que conheça a melodia:
Ambos, eu e meu amigo, admirados com essa história e ao mesmo tempo
encantados com aquele som de piano, passamos a procurar por discos de Satie. E
encontramos. Os títulos das composições eram tão curiosos quanto a própria
música: Morceaux en forme de poire (Peças
em forma de pera), Jack in the box, Gnossiennes, Gymnopédies, Ogives,
Sarabandes... e centenas de outras.
Eu conhecia Lúcia e sua irmã Célia desde que eram meninas, ou
adolescentes, bem antes de ser aluno de sua mãe. Mais tarde tornei-me amigo
também do irmão caçula dessas garotas, o Tuca (Arthur Armellini Júnior).
No ano de 1960 ou 1961 eu recebi uma visita de Célia e Lúcia, quando eu morava na Rua Augusto Ribas nº 571, em Ponta Grossa, e tiramos uma fotografia juntos no quintal. Lúcia é a mocinha à direita.
Por volta de 2005, eu recebi a visita de Lúcia
quando morei na Rua Marechal Hermes, em Curitiba.
Lúcia ao piano em tempos mais recentes.
Em 2001, numa das viagens que fizemos à Europa, eu e Rubens Gonçalves,
ao traçarmos o nosso roteiro de passeios pela França, resolvemos ir a Honfleur,
na Normandia, porque queríamos conhecer a cidade que era a preferida pelos
antigos artistas plásticos impressionistas, e para conhecermos Les Maisons
Satie, isto é, o Museu Erik Satie. Tínhamos lido a respeito, sabíamos que
Honfleur era a cidade natal de Satie, e que o seu museu era um local muito interessante
para ser visitado.
Honfleur encantou-nos pelo Vieux
Bassin (velho cais) e pela cidade com seus prédios e igrejas muitas vezes
centenários.
Honfleur
Rubens em frente ao hotel onde nos hospedamos, o Hôtel du Dauphin. A janela de nosso quarto, exatamente na esquina, no 2º andar, é a que está sobre a palavra HOTEL. A janela do nosso banheiro é a que fica sobre a palavra DAUPHIN.
Foto que, da janela do quarto, tirei do Rubens na janela do banheiro. À direta, uma parte da igreja de Santa Catarina (antiga catedral medieval) de madeira, do século XV. A torre separada da igreja, também de madeira, é a que se vê ao centro sustentada por várias toras.
Francisco Souto Neto no Vieux Basin (velho porto).
Rubens Faria Gonçalves no Vieux Basin, onde os expressionistas ficavam pintando.
Francisco Souto Neto em frente ao antigo carrossel.
Francisco Souto Neto no portão de entrada ao Museu Erik Satie.
Rubens ouvindo o piano que, “sozinho”, toca as Gnossiennes.
Souto ouvindo o piano “sozinho” tocar as Gnossiennes.
Erik Satie em 1920.
O Museu Satie impressionou-nos intensamente. Como de se esperar, tendo
sido um compositor tão revolucionário e inovador, seu museu é também
surpreendente. Fizemos lá dentro uma filmagem que culmina com o piano branco de
Satie tocando “sozinho”. Vale a pena ver este raro pequeno filme:
Adiante, alguns comentários sobre o livro Erik Satie, escrito pela
francesa Anne Rey.
O livro
Capa da edição francesa.
Página de abertura do livro. Vi que ele pertenceu anteriormente a Alexandre Brasolim de Magalhães, a quem não conheço. Procurei por ele no Google e descobri que ele mora em Curitiba e é violinista e concertino da Orquestra Sinfônica do Paraná. É possível vê-lo regendo a orquestra num vídeo do YouTube.
A página 1 do livro, e as duas seguintes, fazem uma síntese da personalidade de Erik Satie e sua relação com intelectuais e músicos da sua época.
Páginas 2 e 3, conclusão da página 1
Da página 5 à 9, a infância sofrida pela morte da mãe aos 4 anos, e depois pela perda da avó, afogada...
...a madrasta e o ódio à música nas páginas 6 e 7. A idade adulta...
...e os amigos nas páginas 8 e 9, dos quais Debussy
seria o melhor.
No último parágrafo da página 33, a autora revela
que Vexations (vide partitura na
página seguinte) deve ser executada por 840 vezes seguidas e sem interrupção, o
que equivaleria aproximadamente a 12 horas ininterruptas de um recital de
piano. “Recital” porque a peça musical deveria, em tese, ser executada por um
único pianista...e
isto não é impossível, porque há na internet um filme de 12 horas seguidas, com
um único pianista tocando Vexations...
e ele termina num impressionante estado de exaustão.
O livro é sobretudo técnico, como se vê nas páginas
12 e 13, com análises a diversas partituras de Satie.
O livro termina na página 142, no subtítulo Solidão e pobreza, e vem nas próprias palavras amargas de Erik Satie, numa finitude triste e amarga, sem ter conhecido em maior profundidade a admiração e reconhecimento que lhe temos hoje.
A quarta capa (ou contracapa) do livro.
Ao encerrar, anexo uma filmagem de Igor Levit, o
pianista que executou Vexations num
filme que tem 12 horas de duração. Esse filme está no YouTube. O que vou anexar
em primeiro lugar é uma versão bem reduzida, de apenas 11 minutos, mas que preserva
as imagens de sofrimento e de dor física do famoso pianista, por passar tantas
e tantas horas executando Vexations
sem interrupção.
O mesmo Igor Levit no filme completo, com 12 horas
de duração:
Vou anexar também, apenas por curiosidade, o recorde
registrado de um pianista, Nicolas Horvath, executando Vexations num filme com duração de 24 horas... uma loucura!
Algo é inconteste: a genialidade de Erik Satie, o
compositor que descobri acidentalmente, há quase meio século, quando passeava
pela Rua XV de Novembro em Curitiba.
-o-
Nenhum comentário:
Postar um comentário