LIVROS COM HISTÓRIAS QUE NÃO ESTÃO NOS LIVROS – Um livro
pode conter muito mais do que aquilo que vem escrito no seu conteúdo. O
exemplar pode ter histórias pessoais do seu dono, ou conter dedicatórias raras,
ou ter sido emprestado e ter ali registradas impressões manuscritas dos
leitores, por ter sido impresso há cem ou duzentos anos... e assim por diante.
Este blog pretende, pois, contar algumas dessas histórias paralelas a
determinados exemplares da minha biblioteca.
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“A NÁUSEA” de JEAN-PAUL
SARTRE
e a história pessoal
de uma antiga paixão
Em 1967 fiz uma extensa viagem que envolveu Bolívia, Peru, Chile e
Argentina, com ênfase no passado dos três primeiros países abrangendo o antigo
Império dos Incas.
Retornando a Ponta Grossa, entrei na Livraria Montes procurando algum livro para ler, quando encontrei o romance existencialista A Náusea, de Jean-Paul Sartre, um dos meus autores prediletos e de quem eu já lera diversos outros livros, como O Muro, a trilogia Os Caminhos da Liberdade (composta por A Idade da Razão, O Sursis e Com a Morte na Alma), As Palavras... e vários textos de teatro, como As Moscas, Entre Quatro Paredes, As Mãos Sujas, A Prostituta Respeitosa, Orfeu Negro. Entretanto não li o livro imediatamente.
Passados dois anos, em 1969, aos 26
anos, tive uma pneumonia quando trabalhava na agência do Banco do Estado do
Paraná, em Ponta Grossa. Recorri a um médico do Sindicato dos Bancários, que me
tratou e determinou que eu passaria não me recordo quantos dias em casa, em
repouso absoluto. Então aos cuidados de minha querida e saudosa mãe, enquanto
passei os dias acamado dediquei-me principalmente à leitura.
O primeiro livro que peguei para ler enquanto
permanecesse de cama, foi A Náusea. Como de hábito, li com uma caneta à
mão, grifando os trechos mais interessantes e escrevendo minhas impressões às
margens das páginas.
Seria impossível registrar aqui os
momentos mais impressionantes da obra, porque são inúmeros... ou a obra em sua
totalidade. Mesmo assim, fiz cópias de algumas páginas – apenas algumas poucas –
das centenas que considerei importantes. As quatro cópias abaixo, envolvendo oito
páginas, são para mim uma síntese do movimento literário que foi chamado de “existencialismo”.
Se o leitor tiver a sorte de lê-las, sem dúvida sentirá um impulso para conhecer
inteiramente esta obra-prima da literatura mundial:
As páginas 213 a 217 são também sínteses do existencialismo e reforçam a compressão de que Sartre, tendo recebido o Prêmio Nobel de Literatura, recusou-o para não sentir comprometida a sua liberdade.
Este meu blog,
como se sabe, não tem o propósito de fazer crítica literária, mas revelar
situações pessoais que ocorreram durante ou após a sua leitura. No caso deste
livro, ele registra uma grande paixão que tive por uma moça e que durou alguns
anos... uma paixão, entretanto, não correspondida. Aconteceu o seguinte:
Acamado, no
segundo dia de tratamento da pneumonia, preocupado com minha saúde e temendo
por complicações que pudessem me levar à morte, resolvi escrever um soneto em
versos alexandrinos, em forma de um acróstico, com as palavras “minha
pneumonia”, entretanto dedicado à garota por quem eu era apaixonado há anos. Seu
nome: Sônia Maria. Ela era uma moça bonita e culta, atraente, de quem
tentei me aproximar. Como eu era amigo de seu pai (e par de diretoria na
União dos Trovadores), costumava frequentar a casa da família. Porém eu não era
correspondido na paixão. Ela namorava um rapaz muito bem situado, que era visto
dirigindo um belo carro “último tipo” (hoje diríamos “carro novo” ou “carro
zero km”). Tendo perdido meu pai em 1963, eu era àquele tempo um simples
escriturário no banco onde trabalhava.
Feito o soneto em 9 de outubro de
1969, eu o transcrevi na última página do livro de Sartre que eu estava
começando a ler. Como o soneto não estava perfeito na forma, eu pretendia ainda
lapidá-lo.
O acróstico com o nome da minha
inspiradora e homenageada não poderia ser empregado num soneto –
obrigatoriamente de 14 versos – porque o nome duplo “SÔNIA MARIA” tem apenas
dez e não quatorze letras. Assim, formei o meu acróstico com as palavras “MINHA
PNEUMONIA”, frase que contém as necessárias 14 letras, e dedicado a “Maria” –
simplesmente “Maria” –, porque Marias são muitas e a leitura
do poema não direcionaria o leitor à minha “indiscrição” que, naquela época,
seria divulgar o nome completo da minha musa...
E o soneto acrosticado, que
transcrevi no livro que estava lendo quando tive pneumonia, ficou esquecido
naquelas páginas. Nunca o lapidei e tampouco o publiquei.
Agora, passado mais de meio século,
ao pegar o velho exemplar de “A Náusea”, senti-me muito surpreso ao encontrar
ali o antigo soneto acrosticado, pois eu já não me recordava em que livro eu
deixara o soneto anotado.
Resolvi corrigir o soneto, não no que escrevera originalmente na página em branco do livro, mas numa cópia que imprimi da página manuscrita com o poema, agora acertando o número de sílabas poéticas que um soneto alexandrino precisa ter, obrigatoriamente, isto é, 12 sílabas poéticas (e não sílabas gramaticais) em cada verso. Acertei esse número nos versos que estavam irregulares, porém ainda continua existindo uma falha grave no soneto, que é a seguinte: os versos alexandrinos exigem que a metade de cada estrofe, ou seja, a sexta sílaba poética tem que ser tônica... e nem todas as estrofes de Minha Pneumonia atenderam a essa exigência. Para corrigir isso, eu precisaria modificar o poema radicalmente. Por esse motivo resolvi deixar assim como ficou; pelo menos a versificação, a rima e a métrica estão corretas. Devo lembrar que a pronúncia da palavra latina “pneumoniæ” (o æ "emendado") é “pneumonié”... para rimar com “até”.
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DIA DE PNEUMONIA
Soneto acrosticado
em versos alexandrinos,
de F. Souto Neto
Mas que súbita
altura de temperatura!
Insólita dor o
tossir me faz sentir!
Não sei; a quem,
pois, minha débil voz atura?
Hoje à pneumonia em
dia de destruir.
A mim não
destruirão, estafilococos,
Perversos
“diplococcus pneumoniæ”!
Não, se anticorpos
lanço contra estreptococos
Em exércitos que me
estremecem até!
Uma guerra estranha
ocorre em minhas entranhas.
Mas terão
anticorpos, ou não, algum louro?
Oh, sanhas da dúvida
que me trazem manhas:
Não quero nunca
morrer de pneumonia,
Inda que em suave
agonia de leito de ouro,
Antes de ter beijado
e amado Maria.
(Escrito em meu leito de enfermo,
no 2º dia da pneumonia,
[em Ponta Grossa] a 9.10.1969)
PASSADO E PRESENTE
Concluindo, quero deixar registrado
que o tempo escorre em velocidade inexorável e impiedosa. Para quem se aproxima
da idade de 80 anos, aquilo que ocorreu há cerca de meio século parece ter sido
ontem. Por isso, os octogenários têm a impressão de não terem vivido tantos
anos. É como se houvesse algo de errado nessa contagem, um equívoco na soma do
tempo. Talvez por isso as palavras do espanhol Calderón de la Barca, escritas
há mais de 500 anos, sejam tão verdadeiras e atuais:
¿Qué
es la vida? Un frenesí. ¿Qué es la vida? Una ilusión, una sombra, una ficción;
y el mayor bien es pequeño; que toda la vida es sueño, y los sueños, sueños
son.
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