LIVROS COM HISTÓRIAS QUE NÃO ESTÃO NOS LIVROS – Um livro pode
conter muito mais do que aquilo que vem escrito no seu conteúdo. O exemplar
pode ter histórias pessoais do seu dono, ou conter dedicatórias raras, ou ter
sido emprestado e ter ali registradas impressões manuscritas dos leitores, por
ter sido impresso há cem ou duzentos anos... e assim por diante. Este blog
pretende, pois, contar algumas dessas histórias paralelas a determinados
exemplares da minha biblioteca.
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O DIA EM QUE TÚLIO
DESCOBRIU A ÁFRICA, de Ralf Rickli
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O DIA EM QUE TÚLIO
DESCOBRIU A ÁFRICA,
Ralf Rickli
Comemora-se no Brasil, em 20 de novembro, o Dia Nacional da Consciência Negra, alusiva ao dia em que foi morto Zumbi dos Palmares, em 1695, um líder que é o símbolo da luta contra a escravidão e pela liberdade dos africanos e afro-brasileiros. É feriado em cinco estados da federação e em mais de mil municípios. Há um projeto de lei, em discussão no Senado, propondo que esse dia seja feriado nacional.
Neste momento em que a raça negra é cada vez mais respeitada e enaltecida, existe, paralelamente, um funesto e incompreensível preconceito racial no Brasil, às vezes bem explícito, mesmo sendo proibido por lei, mas quase sempre camuflado.
Sei diretamente de amigos negros que o preconceito de raça existe por
aqui numa proporção muito impressionante, algo indigno de países que se
pretendam civilizados. Por isso causou indignação a declaração do
vice-presidente da República, o general Mourão, de que não existe preconceito
no Brasil. É evidente o negacionismo de membros do atual governo federal, e do
próprio presidente da República, às questões científicas e até mesmo no simples
confronto às verdades, as mais diversas, sob os seus mais variados aspectos.
As palavras negacionistas do general
Exemplo disso ocorre das reações ao brutal assassinato do negro João Alberto no supermercado Carrefour de Porto Alegre. Há dois dias, um repórter indagou ao vice-presidente Mourão sobre esse crime. O general respondeu, ipsis literis: “É lamentável, né, é lamentável isso aí, porrr, não é? Isso é lamentável, é, porrr, em princípio é segurança totalmente despreparada pra atividade que eles têm que fazer, né?”. O repórter insistiu: “O senhor considera que é um caso que mostra um caso de racismo?”. A resposta do general foi bem enfática: “Não... eu sou... No Brasil não existe racismo. É uma coisa que querem importar aqui pro Brasil, e isto não existe aqui, né?”. O repórter se surpreendeu: “Não tem racismo?”. E o general: “Não. Eu digo pra você com toda tranquilidade: não tem racismo aqui!”. O repórter, surpreso: “Não considera que foi uma violência rac...”, e o general atalha: “Não, não existe racismo aqui. (...) Aqui existe desigualdade”.
https://www.youtube.com/watch?v=xfeUY05-Uk4
A declaração do vice-presidente da República é assombrosa para todos nós que sabemos, de sobejo, o quão intenso e abjeto é o racismo no Brasil. Para alguém dizer que aqui não existe racismo, só mesmo se vive no mundo da Lua. Nesse governo negam-se verdades com uma naturalidade que é de pasmar. A negação à existência desse lado perverso e insensato de grande parte dos brasileiros “brancos”, é ter medo de reconhecer e não querer enfrentar e combater essa face monstruosa e abjeta do país. O negacionismo e a fuga para o irreal têm sido mais cômodos para o governo que aí está.
Na semana passada, houve mais um caso comentado em todos os canais de televisão do Brasil, assim descrito na internet: “Nesse domingo 15/11/2020 entrou um casal de idosos na loja Ponto Frio do GV Shopping e perguntou: ‘Quem é o gerente da loja?’ O gerente, que estava próximo, respondeu: ‘Sou eu, em que posso te ajudar?’. A senhora olhou-o dos pés a cabeça, pegou no braço de seu esposo e respondeu: ‘É inadmissível que um negro gerencie uma loja tão grande como esta’. O gerente, pego de surpresa, ficou tão constrangido que abaixou a cabeça e não teve resposta. O casal saiu da loja em seguida, e o gerente também não conseguiu ficar no salão de vendas, retirando-se para uma sala particular. Um dos funcionários que assistiu ao fato, após alguns minutos foi atrás para ver como seu gerente estava, e encontrou-o chorando como uma criança . Todos os funcionários ficaram consternados após saberem do ocorrido. A equipe, então, decidiu tomar a atitude hoje, 16/11/2020, foi esta:
https://www.youtube.com/watch?v=HLrWTQdsEks
Por isso e mais que isso, o livro de Ralf Ricki
Conheço Ralf Rickli desde que ele, um adolescente, tocava órgão na Igreja Evangélica da Rua Comendador Araújo aqui em Curitiba. Tenho uma foto dele àquele órgão, que momentaneamente não sei onde está, mas quando encontrá-la pretendo inseri-la neste texto.
Ralf – músico, publicitário e licenciado em pedagogia – era um rapaz desde muito cedo afeito à literatura, à música e à cultura em geral. Embora louro de olhos azuis, sempre orgulhou-se de sua origem multirracial. Afinal, a miscigenação étnica é uma realidade insofismável ao brasileiro, a todos nós. Bem a propósito, recentemente meu amigo Carlos Oswaldo Bevilacqua citou um trecho de Gilberto Freyre no livro Casa-Grande e senzala: “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam os nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra”.
O personagem do livro O dia em que Túlio descobriu a África, que li no fim da década de 90 mas que ainda me recordo bem, conta a história de um rapaz negro, trabalhador, morador de uma favela, que é confundido pela polícia com um marginal. O primeiro parágrafo da obra diz: “Parado aí, neguinho! Encoste na parede e não se mexa!”.
É exatamente o que acontece com grande frequência no Brasil, em qualquer parte, por preconceito de cor – aquilo que o “vice” finge não ver que existe com brutal intensidade em nosso país.
O personagem Túlio decide-se a fazer uma viagem a inúmeros países
africanos. Sendo ele um rapaz pobre, é através da magia de um tapete voador que
o faz atravessar as vastidões do continente negro. E então, baseando-se o autor
em minuciosas e profundas pesquisas a respeito das nações da África, faz um
interessante relato de suas particularidades e diferentes culturas.
O autor, com uma linguagem atraente, mostra a importância do continente
tão pouco conhecido por nós, que somos seus vizinhos no planeta. Eu mesmo
conheço pouco da África: estive apenas no Egito e Tunísia. Mas já tenho lido
muito sobre aquele continente e acho muito interessante que Ralf Rickli
refira-se até mesmo a algumas verdades que foram distorcidas pela ficção
cinematográfica. Por exemplo, os egípcios, tanto os faraós quanto o restante do
povo, na verdade eram negros.
Nas palavras de Ricardo de Andrade em Arqueologia e História das Religiões, “Negros não são descendentes de escravos, como dizem os livros escolares. São descendentes de civilizações africanas, de reinados fortes e poderosos. São descendentes de reis, rainhas, príncipes e princesas. São parentes de homens e mulheres que desenvolveram a escrita, a astrologia, as ciências e as pirâmides. São fruto de um povo que desenvolveu as técnicas agrícolas e que domina a medicina alternativa. São fruto de um povo que conhece as folhas e como despertar o poder delas”. E minha prima Lúcia Helena Souto Martini, escreveu-me recentemente algo muito interessante a respeito do tema “escravos”: “Todos nós [os brancos] somos descendentes de escravos. É matematicamente impossível que em algum ramo remoto de nossa árvore genealógica não haja pelo menos um escravo. Todos os povos escravizaram outros povos – às vezes, seu próprio povo”.
(OBSERVAÇÃO: Minha prima Lúcia Helena, acima referida, após a leitura deste artigo, escreveu-me e fez o seguinte acréscimo ao que acima transcrevi: "Uma observação: quando eu escrevi "todos nós" referi-me a todos nós mesmo, brancos, negros, asiáticos, indígenas. Acrescento: da mesma forma que descendemos de escravos, todos nós também descendemos de nobres, sábios, poderosos. A maioria dos registros genealógicos foi perdida, e ignoramos nossa ascendência, a não ser que tenhamos a sorte de encontrar pistas por meio de pesquisa. Como a escravização de africanos é recente em termos históricos, temos clareza quanto à sua crueldade abjeta, que apesar de vergonhosa (ou por isso mesmo) serve para demonstrar o quanto se deve aos descendentes dos africanos (e indígenas) escravizados num passado ainda ao alcance da análise humana")
E assim Ralf Rickli faz um passeio pelos 31 lugares listados da quarta
capa do seu livro, que conta com um apêndice para interessados em
aprofundamento, farta bibliografia, índice remissivo e sumário temático e
pormenorizado. Além disso, alguns gráficos, como este abaixo:
É interessante observar que o livro de Ralf Rickli foi adaptado para uma peça teatral, O dia em que Túlio descobriu a África – Um jovem brasileiro visita as civilizações de seus antepassados, que sob a direção de Egla Monteiro e Miguel Rocha, teve apresentação no Teatro do Sesc Ipiranga (São Paulo) e no TUSP – Teatro Universidade de São Paulo no ano de 2009.
Enfim, um livro inteligente, para leitores de todas as idades. Para ser
lido, guardado e relido.
Museu da Pessoa
Ralf Rickli tem um depoimento de quase duas horas, gravado para a História, no Museu da Pessoa (São Paulo), neste link:
https://acervo.museudapessoa.org/pt/conteudo/video/ralf-rickli-172684
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GRATÍSSIMO pela verdadeira reportagem sobre meu trabalho, meu caro Souto!!
ResponderExcluirE também devo informar que em 2015 preparei uma versão renovada (ampliada, atualizada, em grande parte com noca redação) que seria publicada pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, mas a mudança de prefeito com os originais já na gráfica acabou impedindo que saísse.
Um ano depois, ainda com muita raiva, eu resolvi disponibilizar esse novo texto na internet, na forma de 5 "fascículos virtuais" em PDF, enriquecidos com muito material visual em comparação com o projeto impresso.
O link para o primeiro fascículo é http://tropis.org/afro/tulio2016-1.pdf . Cada fascículo contém links para todos os demais, mas também se pode simplesmente substituir o nº 1, do link acima, por 2, 3. 4 e 5.
Oi, Ralf! Corri página por página para ter uma ideia das modificações e acréscimos e gostei muito. A inclusão das ótimas fotos enriquece o conteúdo. Proximamente verificarei com maior profundidade. Parabéns. Abraço.
ExcluirAdorei, primo! Quero ler esse livro. Uma observação: quando eu escrevi "todos nós" referi-me a todos nós mesmo, brancos, negros, asiáticos, indígenas. Acrescento: da mesma forma que descendemos de escravos, todos nós também descendemos de nobres, sábios, poderosos. A maioria dos registros genealógicos foi perdida, e ignoramos nossa ascendência, a não ser que tenhamos a sorte de encontrar pistas por meio de pesquisa. Como a escravização de africanos é recente em termos históricos, temos clareza quanto à sua crueldade abjeta, que apesar de vergonhosa (ou por isso mesmo) serve para demonstrar o quanto se deve aos descendentes dos africanos (e indígenas) escravizados num passado ainda ao alcance da análise humana.
ResponderExcluirAdorei, primo! Quero ler esse livro. Uma observação: quando eu escrevi "todos nós" referi-me a todos nós mesmo, brancos, negros, asiáticos, indígenas. Acrescento: da mesma forma que descendemos de escravos, todos nós também descendemos de nobres, sábios, poderosos. A maioria dos registros genealógicos foi perdida, e ignoramos nossa ascendência, a não ser que tenhamos a sorte de encontrar pistas por meio de pesquisa. Como a escravização de africanos é recente em termos históricos, temos clareza quanto à sua crueldade abjeta, que apesar de vergonhosa (ou por isso mesmo) serve para demonstrar o quanto se deve aos descendentes dos africanos (e indígenas) escravizados num passado ainda ao alcance da análise humana.
ResponderExcluirQuerida prima! Muito oportuno o que você escreveu acima. Resolvi acrescentar as suas palavras num adendo, dentro do meu próprio artigo. Dê uma olhada lá; acho que vai gostar. Beijo!
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