O CHOQUE DA NEVE:
SOBRE VIVER DE ARTE EM CURITIBA
Autor: BELMIRO SANTOS
LIVROS COM HISTÓRIAS PARALELAS QUE NÃO ESTÃO NOS LIVROS – Um livro
pode conter muito mais do que aquilo que vem escrito no seu conteúdo. O
exemplar pode ter histórias pessoais do seu dono, ou conter dedicatórias raras,
ou ter sido emprestado e ter ali registradas anotações dos leitores, por ter
sido impresso há cem ou duzentos anos... e assim por diante. Este blog
pretende, pois, contar algumas dessas histórias paralelas a determinados
exemplares da minha biblioteca.
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O LIVRO “O CHOQUE DA
NEVE:
SOBRE VIVER DE ARTE EM
CURITIBA”,
de BELMIRO SANTOS
por Francisco Souto
Neto
Introdução:
no começo, a pintura de Belmiro Santos
Para chegarmos ao autor do livro, Belmiro Santos, devo antes fazer um rápido retrospecto de minha atuação na vida cultural de Curitiba e do Paraná e de como, preliminarmente, conheci o artista plástico em apreço.
Fui bancário durante 30 anos. Ingressei no Banco do Estado do Paraná, o Banestado, através de concurso público e trabalhei na agência de Ponta Grossa durante 10 anos. Depois, através de concurso interno, conquistei o cargo de inspetor da instituição. Um diretor que gostava dos meus relatórios de inspeção convidou-me a ser seu assessor, ao tempo do Governo Jayme Canet. Sucederam-se vários governos e fui sendo mantido no cargo pelos diretores que se seguiram através de vários governos estaduais. Antes de encerrar minha carreira, fui também assessor de um vice-presidente, de dois presidentes (Edisson Elery Faust, da Banestado Crédito Imobiliário e de Carlos Antônio de Almeida Ferreira, do Conglomerado Financeiro Banestado). Ao aposentar-me em 1991 eu era, simultaneamente, assessor para assuntos de cultura do Banestado.
Consegui instituir o que chamei de “Programa de Cultura do Banestado”, um empreendimento que teve início com um concurso anual de artes plásticas, denominado SBAI – Salão Banestado de Artistas Inéditos. Nos anos que se seguiram, ampliei minha atuação: daquele apoio inicial às artes plásticas, expandi o meu trabalho a um vasto universo que abrangeu as letras (literatura e poesia), música, teatro, cinema e até... arqueologia, quando ao mesmo tempo fiz parte da diretoria do Instituto Saint-Hilaire da Defesa dos Sítios Históricos.
Como disse, dirigi o Salão Banestado até à minha aposentadoria. Para o julgamento dos artistas que participavam desse certame, a cada novo ano eu chamava três respeitados e conhecidos artistas plásticos que julgavam com total liberdade as obras concorrentes. Embora sempre presente aos trabalhos do julgamento, eu deixava claro aos jurados que eles eram soberanos em seu trabalho. Orgulho-me de ter me mantido calado durante todos os trabalhos de julgamento, sem jamais demonstrar minha preferência por um ou outro dos artistas participantes. Por isso, estranhei quando meu velho amigo Ennio Marques Ferreira – na ocasião em que o convidei para integrar a comissão julgadora de um dos Salões – perguntou-me se a diretoria do Banestado teria alguma recomendação a respeito da escolha dos participantes e da premiação. Respondi-lhe: "É claro que não! Os três componentes da comissão julgadora têm total liberdade para eliminar as obras que considerarem fracas e classificar e premiar aquelas que julgarem as melhores”. E esclareci a ele, o Ennio, e a todos os componentes das comissões julgadoras que se sucederam por muitos e muitos anos, o seguinte: “Estarei presente durante todo o seu trabalho de julgamento, mas não direi nem uma única palavra sobre o que penso das obras e dos artistas concorrentes, para não influenciá-los em absolutamente nada”. Por essa minha imparcialidade e por outros tantos méritos do próprio concurso, o SBAI – Salão Banestado de Artistas Inéditos foi um total sucesso durante anos seguidos e respeitado por sua seriedade. Nos anos em que o Salão dos Novos da Secretaria de Estado da Cultura entrou em recesso, o “meu” Salão Banestado ocupou o seu lugar com naturalidade e sem restrições.
Após aposentar-me em 1991, o Salão Banestado continuou sendo realizado todos
os anos, porém sem minha presença, e durou até que o Banco do Estado do Paraná
foi extinto no ano 2000.
Quando Belmiro Santos, na qualidade de artista plástico iniciante, entra na minha história
Em 1994, três anos após aposentar-me, o jornalista Alcy Ramalho Filho convidou-me
para fazer parte da comissão que julgaria o certame Curitiba Arte 10, ao lado
de Eduardo da Rocha Virmond, Christine Baptista, Nelly Almeida e Carlos Eduardo
Zimmermann.
É interessante observar que o primeiro Curitiba Arte 10 foi realizado há
exatos 31 anos. A pintura de Belmiro Santos foi por nós aprovada para figurar
na exposição. Esse artista era-me totalmente desconhecido, assim como os demais
participantes. É lógico que, sem conhecê-lo, a pintura de Belmiro foi aprovada
pelo seu próprio mérito e isto é uma prova de que o talento do pintor, embora
ainda muito jovem, começava a ser reconhecido.
Belmiro
Santos no Salão Banestado de Artistas Inéditos
Dois anos depois, em 1996 (cinco anos após minha aposentadoria), em minha coluna Expressão & Arte, informei que o Salão Banestado, agora em sua 12ª edição, voltava em grande estilo. Estava Taís Horbatiuk no comando do concurso, que me surpreendeu e sensibilizou com o convite para eu participar como membro da comissão julgadora do XII SBAI – Salão Banestado de Artistas Inéditos. Eu, que criei o Salão tantos anos antes, agora pela primeira vez iria julgar e premiar os melhores daquele mesmo concurso por mim idealizado. Fomos três os julgadores: eu, Ronald Simon e Simone Ribeiro, que após dois dias de julgamento, com unanimidade conferimos a Belmiro Santos o 1º prêmio do Salão.
A
primeira exposição individual de Belmiro Santos
No ano seguinte, 1997, Belmiro Santos foi convidado para realizar a sua
primeira exposição individual no Sesc da Esquina. Naquela ocasião esse artista
plástico a quem agora eu conhecia, pediu-me para fazer um texto de apresentação
de sua mostra.
Durante toda a vida sempre atendi aos pedidos de artistas para escrever
sobre suas obras de arte. O artista perguntava-me qual seria o preço pelo meu
trabalho, e minha resposta foi sempre: “absolutamente nada”. Desde a primeira
vez que fiz um texto de apresentação de algum artista plástico (o primeiro foi
Chico Lopes e o segundo Edson Busch Machado) tomei o exemplo da crítica de arte
Adalice Araújo: o de jamais, em nenhuma circunstância, aceitar pagamento. Creio
que este foi também um dos fatos que tornaram minhas colunas respeitadas e
admiradas. E assim, como de costume, tive o prazer de apresentar a primeira
individual de Belmiro. O que naquele ano de 1997 escrevi sobre ele e sua arte, foi
acertado. Disse eu: “Um passeio pela exposição dá-nos a certeza de que Belmiro
Santos é um artista ascendente, que vem galgando patamares com a segurança e o
talento dos grandes”.
Pinturas
recentes
Abaixo, algumas pinturas recentes de Belmiro Santos dá-nos a exata
dimensão do quanto evoluiu sua arte ao longo desta primeira quarta parte do
Século XXI, tornando-o um artífice da exuberância e da magia das cores.
Em
2025 Belmiro Santos inicia-se nas letras, escrevendo a autobiografia “O Choque
da Neve”
Antes de referir-me ao livro de Belmiro Santos, acho oportuno comentar
algo que considero muito importante em literatura e poesia: a originalidade e a
criatividade. Os artistas e escritores que rompem com o “status quo” em
princípio costumam encontrar obstáculos e às vezes até mesmo a agressão dos
conservadores. Basta lembrar da Semana de Arte Moderna de 1922, um evento de
cultura realizado em São Paulo, que foi o início do modernismo no Brasil,
reunindo música, literatura, poesia, pintura, escultura, rompendo com os
padrões tradicionais e exibindo a criatividade muito além dos rígidos padrões
da época. Villa-Lobos, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti,
Anita Malfatti e tantos outros foram criticados e às vezes até execrados pela
maioria das pessoas que compareceram à exposição.
Beckett
Na literatura internacional alguns grandes escritores, dramaturgos, poetas, atreveram-se a escrever com desprezo às normas que regem a perfeição, também sofreram com o desprezo e a cólera dos conservadores. Vou dar um exemplo muito interessante, que é o de Samuel Beckett, um dramaturgo, romancista, poeta e crítico, considerado um dos escritores mais influentes do século XX. Eu já conhecia o dramaturgo, autor de “Esperando Godot”, peça a que assisti no teatro. Seu primeiro romance que comprei foi “Como É”. Um detalhe: Beckett recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1969, com isso dando-lhe o reconhecimento de ser o mais importante autor do mundo naquele ano. No entanto, desde o tempo de “Esperando Godot”, Beckett já era um dos mais importantes nomes do teatro do absurdo
Em "Como é”, o texto – isto é, o livro inteiro – não possui pontuação. Entre frases ou períodos diferentes, um espaço duplo simboliza nova frase, ou parágrafo, onde as letras maiúsculas não existem.
Sobre o que versa “Como é”? O personagem vive na lama e na escuridão e não sabe o que faz lá, nem como ali chegou. Aparece uma criatura a quem ele denomina Pim e a ela se associa formando um casal. Ele se autodenomina Bom e carrega seus únicos pertences: um saco cheio de latas e um abridor de latas.
Para ter-se uma ideia, eis algumas páginas do livro, aqui escolhidas
aleatoriamente.
Mais um exemplo extremamente provocativo de Beckett, ao qual talvez o
leitor nem sempre consiga suportar, está no romance “Watt”. Sugiro – ou desafio
– a quem esteja me acompanhando nestes comentários, que leia abaixo o que
encontrará nas páginas 238 e 239 e escandalize-se. Ou divirta-se, como ocorre
comigo. Em suma, ali o personagem Watt conta que a cada
dia o Sr. Knott mudava sua aparência física e explica como:
Saramago
Outro gênio literário é o português José Saramago, igualmente ganhador
do Nobel de Literatura, este de 1998. Ele também recebeu, em 1995, o Prêmio
Camões, o mais importante prêmio literário da língua portuguesa. Entretanto,
no seu livro O Homem Duplicado, não existem travessões nos diálogos e ele usa
uma pontuação não convencional. Em certos momentos, o leitor pode até não
entender se o diálogo é verdadeiro ou nada mais do que um pensamento do autor.
E um detalhe importante: via de regra (melhor seria dizer “sem regra alguma”)
Saramago constrói seus textos de uma forma visualmente compacta, isto é,
capítulos inteiros são escritos sem a utilização de parágrafos. É como se os
textos formassem blocos compactos. Abaixo, um exemplo disso: abri
aleatoriamente o livro O Homem Duplicado nas páginas 222 e 223:
Se escritores tão consagrados e elogiados podem inovar e desprezar a
forma considerada correta de escrever, por quê não também os iniciantes?
“O
Choque da Neve”, o livro de Belmiro Santos
A leitura de “O Choque da Neve” começa causando algo como um embaralhamento na apresentação das frases porque já nas primeiras páginas percebe-se que o texto tem uma forma que nos reporta a uma composição poética. Contudo, não se trata exatamente de poesia, mas de um romance autobiográfico criado num modo diferente de escrever, onde os parágrafos são curtos e dispostos em linhas separadas e sucessivas... parecidos com versos.
Assim, é quase “poetando” que Belmiro nos expõe o início do seu talento nato que o direcionou ao desenho e à pintura. Seu primeiro trabalho foi para o proprietário do cinema de sua cidade do interior do Paraná, pintando cartazes dos filmes anunciados ou em exibição, atividade que era comum ao tempo dos chamados “cinemas de rua”. Aqui Belmiro já exibia a excelência do traço, porém não gostava de simplesmente “copiar”: ele sentia necessidade de manifestar criatividade.
Entre os capítulos do livro, o autor introduziu um pequeno texto em
forma de claquete – referência ao cinema que foi importante para o
desenvolvimento de sua arte – simulando até o sonoro “zapt” que dá início à
próxima cena, como se vê abaixo:
“O Choque da Neve” revela a infância e adolescência difíceis do autor, em sua família carente, de baixa renda. Depois sucede-se a vinda para Curitiba no rigor do inverno, a luta do trabalho pela sobrevivência e o surgimento de uma amizade que se tornaria perigosa.
A jornada da vida é dura e sofrida para o autor. Viver na casa de parentes e enfrentar o desestímulo, e depois a necessidade de compartilhar o mesmo quarto da pensão com pessoas desconhecidas, tudo isso consistiu em doloroso trajeto. O simples existir foi, da parte de Belmiro, um corajoso ato de resistência.
Vários capítulos do livro são ilustrados com desenhos do autor, e alguns
são autorretratos. Assim, associam-se a literatura e o desenho num mesmo
trabalho.
Apesar de todos os obstáculos, Belmiro Santos conseguiu tornar realidade o seu sonho de graduar-se em Curso Superior pela respeitada e prestigiada Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Mais tarde concluiu pós-graduação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, a PUC PR, em Comunicação Audiovisual.
Há décadas, em minhas colunas, quando escrevi que Belmiro Santos era um
dos artistas plásticos mais promissores do Paraná, eu não exagerava. Vejo que,
com muita justiça, ele é hoje admirado e celebrado nos meios artísticos. É um
exemplo que me faz orgulhoso de ter sido o “meu” SBAI – Salão Banestado de
Artistas Inéditos o veículo que ajudou a guindar o talento de Belmiro Santos ao
pendão dos vencedores e de ter estimulado jovens talentosos na busca pelos
caminhos do sucesso, da pintura à literatura, à poesia, à música e ao teatro.
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